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Outono

 

Está a terminar a estação calmosa que, no ano em curso, não foi de excessiva canícula. Outros anos passados foram bem piores. O Outono está a chegar. Outrora era a Primavera das Ilhas, com uma temperatura suave, os dias algo amenos e as noites serenas. O vento de Outono era quase imperceptível. E lá dizia a canção: “Vento de Outono / contigo estou ...”

No fim do verão e primeiras semanas de Outono, se faziam as colheitas do milho, que as do vinho já haviam passado. O mosto passara aos balseiros e, depois de fermentado, às barricas, para, em Janeiro, ser trasfegado e limpo entrando na cura.

O milho era colhido, depois de, antes lhe haver sido retirada a espiga ou bandeira para amadurecer mais rapidamente. E, depois, vinha a esfolhada, um trabalho quase sempre divertido e que reunia, ao serão, familiares e vizinhos. Hoje, são raras essas esfolhadas, pois o milho quase não se colhe para uso domésticos. A maior parte é destinado a forragem para alimentação do gado vacum. E que interessantes e alegres eram essas noites de “descascar o milho”, como por cá se dizia!

Depois de seco no forno, era “avantejado”, recolhido em arquibancos ou caixas, barricas e mais tarde em depósitos de latão, todos estes recipientes devidamente enxofrados para ser utilizado durante o ano inteiro. E casa onde havia milho para o ano era casa feliz pois a subsistência da família estava garantida. O resto vinha com o decorrer do ano: a matança do porco e a conservação dos produtos respectivos, o leite retirado da “vaca da porta” ou da cabra, a carne de vaca, pelo Natal, Páscoa e Espírito Santo, os ovos e galinhas da capoeira, e as hortaliças do quintal: couves, nabos, funchos, abóboras e bogangos, batatas brancas e doces...

Agora importa-se algum milho, para a ementa familiar, mas o mais vulgar é adquirir aquele cereal já farinado ou usar o pão de trigo das padarias. Tempos diferentes e que, por serem os de mais fácil vivência não são os melhores para a economia doméstica.

Tudo isso que quase deixou de existir, resulta do abandono dos campos, que vão regressando aos primeiros tempos do povoamento: abunda o arvoredo selvagem a assenhorear-se das terras de semeadura, como eram conhecidas. Tudo é importado. Ou quase tudo...

Mas o sistema adoptado, numa modernização de costumes, não é somente destas ilhas. Elas estão a seguir, cegamente, o que vai acontecendo por esse mundo fora, principalmente no continente português. E já ninguém fala nos serões da esfolhada ou do descascar do milho. Vale por isso trazer aqui o que escreveu o romancista português, outrora bastante lido, Júlio Dinis ou Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871):“...não há outros serões mais divertidos também. Ali todos se riem, todos cantam, todos se abraçam, e se beijam até; e fala-se ao ouvido, e graceja-se, dança-se, e com franqueza, se apontam defeitos, e sem ofensa se recebem censuras, e até são mais acolhidas as lisonjas; e tudo isto então, toda esta apetecível desordem, todo este abandono de etiqueta, à vista da porção sisuda da companhia, à qual a tolerância fecha desta vez excepcionalmente os olhos; e, a alumiar uma azáfama, meio festiva, meio laboriosa, apenas a luz mortiça dum modesto lampião, pendurado de uma trave do tecto ou, ainda melhor, a suave claridade do luar em tempo descoberto! (...) Cada espiga (ou maçaroca) vermelha, cada espiga de milho-rei – como por lá lhe chamam – é a sentença promulgada contra o feliz, a cujas mãos ela chegou. Cabe-lhe distribuir por toda a assembleia, ou receber de toda ela, um abraço mais ou menos apertado...”(1)

Por cá os serões eram idênticos. No século dezanove não havia candeeiros nem velas de estearina mas as simples candeias alimentadas a óleo de peixe: albafar, toninha e até baleia. No entanto, habituados que estavam, ninguém estranhava. A folia era a mesma. E, por vezes, a lua entrava e alumiava os espaços, qualquer que eles fossem, até os saguões das casas morgadias. Tudo, porém, terminava às nove horas da noite, quando o sino da Câmara dava o toque de recolher... A partir daí ninguém podia andar na rua.

Hoje, das esfolhadas quase ninguém se lembra, infelizmente. E é pena.

1) Dinis, Júlio, “As Pupilas do Senhor Reitor”, Livraria Escolar Progredior, pág.160.

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